Em regra, depoimentos são mantidos em segredo para preservar delatores. Teori Zavascki permitiu exceções em casos da Lava Jato
Cármen Lúcia homologou na segunda-feira (30) as delações premiadas de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht no âmbito da Lava Jato, operação que revelou desvios bilionários em contratos da Petrobras, maior estatal do país.
A decisão da presidente do Supremo Tribunal Federal, que valida o uso das informações dadas pelos integrantes e ex-integrantes da empreiteira ao Ministério Público Federal em troca de uma futura redução de pena, veio acompanhada de outra: a que mantém o sigilo sobre o conteúdo do que foi dito.
Se por um lado a iniciativa de Cármen Lúcia abre espaço para que os investigadores ampliem a apuração contra membros do governo atual e anterior, além de parlamentares do Congresso, por outro interfere no cronograma do estrago político da delação, já que sua íntegra não foi tornada pública. O sigilo aumenta a chance de vazamentos seletivos contra figuras específicas e pode distribuir o dano ao longo do tempo.
A homologação é uma etapa obrigatória das delações premiadas, em que um juiz valida os depoimentos para que ele sejam utilizados em uma investigação ou processo. A decisão sobre divulgar ou não os conteúdos de depoimentos é do juiz responsável pelo caso.
Por que o sigilo é a regra geral
A lei que regula as delações premiadas, de 2013, estabelece que os depoimentos que integram o acordo devem ser mantidos em sigilo. O conteúdo só pode ser divulgado se o Ministério Público apresentar uma denúncia usando a delação e a Justiça determinar a abertura da ação penal.
A denúncia é uma fase posterior à investigação, quando o Ministério Público já tem convicção de culpa dos envolvidos e faz uma acusação formal à Justiça. Se o magistrado responsável aceitar a denúncia, abre-se assim um processo penal, que termina com a condenação ou absolvição dos réus.
Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça e ex-corregedor nacional de Justiça, autor de um livro sobre delações premiadas, afirma ao Nexo que a lei estabeleceu o sigilo como regra para proteger o delator e todas as demais pessoas citadas no depoimento, sobre os quais não há necessariamente provas de envolvimento em crimes.
O segredo também serve para assegurar uma investigação mais eficiente por parte da polícia e do Ministério Público. Isso porque a delação não se basta. É preciso provar seu conteúdo. Se alguém diz que alguém roubou, é preciso que os investigadores busquem evidências de que isso de fato aconteceu.
“A delação é um meio de obtenção de provas. A partir daquilo que o delator disse, vai haver uma investigação, a polícia vai verificar se a conta existe, em que dia e hora aquela transferência foi praticada. (…) Põe a polícia para investigar, põe o Ministério Público para procurar prova”
Ex-corregedor nacional de Justiça
No caso das delações de ex-diretores e executivos da Odebrecht, segundo a regra geral, cabe agora à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal procurarem confirmar o que os delatores disseram e, caso encontrem elementos nesse sentido, apresentar denúncias contra os investigados pelos crimes.
Por esse critério, apenas após o Supremo aceitar uma denúncia é que as delações que a fundamentam seriam divulgadas. O sigilo acaba se for aberta uma ação penal porque, em regra, as ações penais são públicas e podem ser consultadas livremente.
Por que o Supremo abriu exceções
Em alguns casos, o Supremo autorizou a divulgação das delações antes que a denúncia fosse aceita, sob o argumento de que o sigilo não servia mais para proteger o delator e não era mais do interesse do Ministério Público.
Em março de 2016, o então relator da Lava Jato no Supremo, ministro Teori Zavascki, morto em 19 de janeiro em um acidente aéreo em Paraty (RJ), autorizou que a delação premiada firmada pelo ex-senador Delcídio do Amaral fosse oficialmente divulgada, no mesmo dia em que o documento foi homologado. O conteúdo desse depoimento já havia sido vazado anteriormente para a imprensa.
Na época, Zavascki afirmou que o sigilo previsto na lei que regula as delações serviria apenas para proteger o delator e “seus próximos” ou para garantir o êxito das investigações.
Em sua decisão, o ministro disse que a Constituição determina que o processo penal deve ser público sempre que possível. Além disso, no caso de Delcídio, não haveria mais interesse em proteger o delator, pois sua identidade já havia sido exposta, e o próprio Ministério Público já não defendia mais a manutenção do sigilo.
A divulgação da delação de Delcídio do Amaral contribuiu para a deterioração da situação política da ex-presidente Dilma Rousseff, que viria a sofrer impeachment. Em seu depoimento, o ex-senador disse que a petista sabia de detalhes da compra superfaturada da refinaria de Pasadena, nos EUA, e tentou obstruir o andamento da Lava Jato, o que ela nega.
Três meses depois, usando o mesmo argumento, Zavascki também determinou a divulgação da delação do ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado, a pedido da Procuradoria-Geral da República.
Machado citou diversos políticos, entre os quais o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) e o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que falou em “estancar” a Lava Jato com o impeachment de Dilma e sua substituição por Temer. Nesse caso, a divulgação foi autorizada depois da homologação, a pedido do Ministério Público.
Revelações da imprensa trazem conteúdo a público
Independentemente da decisão do Supremo de autorizar ou não a publicidade dos documentos, diversas delações tomadas no âmbito da Lava Jato já vieram a público por meio de vazamentos à imprensa.
Há várias formas de um documento vazar. Ele pode ser repassado a um jornalista, de forma não oficial, por qualquer pessoa que tenha acesso à delação, como integrantes do Ministério Público, do próprio Supremo ou advogados das partes envolvidas.
Do lote de 77 termos homologados por Cármen Lúcia, pelo menos uma delas já chegou ao conhecimento do público praticamente na íntegra, de forma não oficial — a de Cláudio Melo Filho, ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht, que menciona repasses de dinheiro a dezenas de políticos, entre os quais o presidente Michel Temer, o ministro-chefe da Casa Civil Eliseu Padilha, o presidente do Senado Renan Calheiros, o ex-ministro-chefe da Casa Civil do governo Dilma, Jaques Wagner, e o deputado federal Antonio Imbassahy (PSDB-BA). Todos negam irregularidades.
Divulgação oficial de conteúdos não é unânime
O ex-ministro do STJ Gilson Dipp afirma ao Nexo que Zavascki errou ao autorizar a divulgação de delações premiadas antes da abertura da ação penal. Para ele, o delator e o Ministério Público não são “donos” do sigilo da delação, já que a regra serve também para proteger terceiros citados no depoimento. E que a lei é clara ao só autorizar a divulgação se após o recebimento da denúncia.
Dipp chegou a defender Delcídio no Conselho de Ética do Senado, no processo que pedia a cassação de seu mandato após o filho do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró gravar o ex-senador articulando um plano de fuga para o pai. Dipp deixou a defesa de Delcídio quando sua delação foi divulgada. À época, disse que abandonava o caso pois não sabia que o ex-senador estava negociando uma delação premiada.
O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, defendeu nesta segunda-feira que todas as delações homologadas por Cármen Lúcia fossem divulgadas. Para ele, a medida contribuiria para que a sociedade entendesse “o papel de cada um dos envolvidos [na Lava Jato], sejam da iniciativa privada ou dos setores públicos”.
Quem decidirá sobre o sigilo das delações da Odebrecht
Em 19 de dezembro de 2016, Janot afirmou a deputados e senadores que pediria a retirada do sigilo de todas as delações de ex-diretores e executivos da Odebrecht, como já havia feito anteriormente no caso de Sérgio Machado.
Em janeiro, poucos dias antes da morte de Zavascki, a Procuradoria-Geral da República mantinha o plano de pedir publicidade das delações depois que elas fossem homologadas. A tendência era Zavascki acatar o pedido. Nesta segunda-feira (30), o procurador-geral da República, indagado por jornalistas, afirmou que “não é hora de falar nada”.
Caso a Procuradoria-Geral da República peça a divulgação das delações, a decisão caberá ao próximo relator da Lava Jato do Supremo, que ainda não foi escolhido. A definição deve ocorrer após o início do funcionamento normal da Corte, na quarta-feira (1º).
Fonte: www.nexojornal.com.br